Na Vertigem da Sua Memória, Rocha de Sousa . 2017
António Carmo, incansável operador das artes picturais, poeta da cor e da linha, volta sempre ao trabalho, editando nova exposição retrospectiva porque o tempo tenta apagar as várias memórias desse mundo que tem mostrado pelos anos fora e agora o faz de novo no Palácio da Galeria em Tavira, 2018, 50 anos de pintura.
No caso deste artista a questão do tempo consumido não se coloca, porque, nascido em 1949 e desenvolvendo sempre os impulsos expressivos que o definiam de um ponto de vista humano, para ele horas e horas, dias e dias, deviam prendê-lo à oficina, como um deus à sua intemporalidade. Sempre ligado a uma perspectiva das artes e do modelo estético, a ideia da sua ocupação era intrínseca, colava-se ao gosto do ver e do ser, do registo onde o imaginário todos os dias se enchia daquelas configurações populares, espíritos libertos, a dançar ou a cantar em espaços floridos, compactos, eternos. Eram compères nos jardins eternos pela renovação da vida. E as suas composições, desde uma grafia inicial, foram crescendo no mesmo módulo quadrado, universo de uma densa cromografia, populações de não se sabe quando nem como, densas, em festa, em abraços, cuja manifestação comunitária parecia palpitar atrás de uma janela ou desafiar o nosso olhar ao seu assalto.
Num percurso de dezenas e dezenas de...
António Carmo, incansável operador das artes picturais, poeta da cor e da linha, volta sempre ao trabalho, editando nova exposição retrospectiva porque o tempo tenta apagar as várias memórias desse mundo que tem mostrado pelos anos fora e agora o faz de novo no Palácio da Galeria em Tavira, 2018, 50 anos de pintura.
No caso deste artista a questão do tempo consumido não se coloca, porque, nascido em 1949 e desenvolvendo sempre os impulsos expressivos que o definiam de um ponto de vista humano, para ele horas e horas, dias e dias, deviam prendê-lo à oficina, como um deus à sua intemporalidade. Sempre ligado a uma perspectiva das artes e do modelo estético, a ideia da sua ocupação era intrínseca, colava-se ao gosto do ver e do ser, do registo onde o imaginário todos os dias se enchia daquelas configurações populares, espíritos libertos, a dançar ou a cantar em espaços floridos, compactos, eternos. Eram compères nos jardins eternos pela renovação da vida. E as suas composições, desde uma grafia inicial, foram crescendo no mesmo módulo quadrado, universo de uma densa cromografia, populações de não se sabe quando nem como, densas, em festa, em abraços, cuja manifestação comunitária parecia palpitar atrás de uma janela ou desafiar o nosso olhar ao seu assalto.
Num percurso de dezenas e dezenas de exposições criadas por António Carmo, em cada retrospectiva ou soma de anos de trabalho e apresentações no estrangeiro, tudo isso indicia o fenómeno mágico de semelhanças na diferença, formas cabendo sempre no mesmo espaço, quadrangular, princípio do seu feitio, entre mobilidade e estabilidade no todo e de todas as vezes agitado pela mudança, pela invenção numa profundidade que não se calcula.
Cada pintura é paisagem com gente em quadro falsamente imobilizado. Porque António Carmo não cessa de agitar o denso contacto dos corpos, entre flores e vagas névoas além ou ali. A densidade das cores irrealiza a representação de um povo comum: esse povo é a alma das festas de aldeia. Mãos entrelaçadas, os rostos subindo a voz ou o cântico, os corpos vestidos de azul, vermelho, amarelos pontuados por verdes, o que de súbito se mistura em muita gente como flores de adorno, abertas à luz, soltando obliquidades da dança e do vento. Os santos das aldeias ou das pequenas cidades conhecem o sistema, infiltrando-se em sombras, emergindo e sobrevoando os tracejados de luz.
Em MEMÒRIA, MEMÒRIAS (retrospectiva de pintura) António Carmo usa na capa do catálogo um aviso sábio sobre festas, alegrias, cores, movimento. Nos dois lados do quadro, um homem pensante à esquerda, uma mulher de olhos cerrados à direita, parecem meditar o que se escreve em pautas de músicas vogando por ali, enquanto a multidão se dissolve, de costas, para um horizonte donde olhamos as costas que nos voltam, talvez em busca de um retorno indeterminado enquanto o claro escuro subverte o discurso visual (cromático) tantas vezes recuperado na obra de António Carmo. Esta estranha e inesperada melancolia tende a captar a nossa percepção aquém dos últimos dançarinos, numa espécie de lassidão do ritmo, de memórias da memória principal que as coisas inesperadas da vida podem instalar no nosso espírito.
Depois, para além de jardins animados e floridos (de novo) António Carmo homenageia a música dos grandes compositores – Mozart, Beethoven, Joseph Haydn e Shubert ou Wagner. São comoções do ser, almas vogando, apaziguando a alma ou lembrando peças destes e de outros autores; até porque a música passa a prolongar-se em longos acordes, evocando o princípio e o fim de multidões inteiras. Indícios de lágrimas podem pressentir-se, não pelo génio em si, mas pelos que lembram perdas, amores, gente perdida nas emigrações da fé. E por vezes, vazia a paisagem de areia, sopram as melodias geniais, não por brevidades cantantes mas pela força encantatória interpretativa, interrogativa.. E por isso, digamos que, na mesma série, o apelo num belo quadro dedicado a Frida Kahlo abre estatal evocação; o que acontece, assaz, noutra bela peça, “No atelier com Leonardo da Vinci”. Assim, entre espaços de uma lembrança insinuante, os apelos convocam mitos, como o de “Cupido”, ou “Arauto do amor”. E nesses casos, em obras de 2007, 2008 e 2005, as composições, embora recorrendo a corpos femininos quase gémeos, não os popularizam num qualquer Olimpo: aqui os corpos tombam, parecem lassos ou dormentes, vestidos de tons de azul escuro e envolvidos por golpes algodoados, como plantas de fantasia, em rosas e vermelhos. Não parece difícil rever a simbologia e lembrar, noutra estética, mitologias como as da Grécia antiga. Toda essa linha envolve, com efeito um belo recurso à cultura de outros tempos embora vertida e reconvertida num enquadramento plástico e estético tocado pela contemporaneidade.
Baptista Bastos, ao abordar uma das últimas exposições de António Carmo considerava que a mão deste artista poderia chamar-se “mão feliz”. Não diria que era nome, alcunha ou marca superior. Ele lembrou-se, nós confirmamos, tendo que a palavra podia colar-se ao sentido da música, tendo em conta, porventura uma rara qualidade dos gestos específicos. Sente-se aqui a beleza dos gestos na sua elegância expressiva, não o mero reconhecimento anatómico.
O trabalho deste artista, não a mobilidade técnica de ossos e músculos, nasce sobretudo do encontro de certos ritmos de trabalho e da sua invisível medida espiritual. A mão, nos artistas, desempenha posturas inesperadas, entre caracterizações próprias de cada arte, tanto na pintura como na música, mas o som não vem desse instrumento. O gesto torna-o propício – e no espaço as teclas do piano entram em nós com valores de azul ou misturas ambíguas por, exemplo. Ou o sol deixa no espaço vibrações de cor de rosa, violeta, por vezes um vermelho em sombra. Mas o aviso adjectivante tem propriedades esclarecedoras importantes. O lado diverso dessa característica é invertida pelo jornalista ao nos avisar que se assiste hoje a um regresso “quase brutal do desmantelamento humano, em favor de uma falsa modernidade, filiada nos princípios da diferença e da distância. Carmo faz reivindicação artística de não abandonar o humano em face do trivial. A sua arte pertence a uma continuidade, renovada e renovadora, de uma cultura de intervenção, e neste aspecto, ele parece-me extremamente original”.
Não haverá, contudo, quem diga de outra forma: que toda a intervenção da arte contemporânea é radicada na metamorfose e no caminho que liberta o invento.